Rui Cardoso Martins

Arrependido mas pouco

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A grande distância falava o homem. O nariz dele enchia o ecrã.

A juíza e o réu a 5760 quilómetros um do outro – a distância mais curta por linha aérea entre Lisboa e Luanda. Por terra, ainda mais longe, 8305 quilómetros entre o Campus de Justiça de Lisboa e a avenida Marechal Groz Tito, unificador da Jugoslávia, restos do socialismo nos quarteirões de África.

Muito bem, disse o homem, ligado pela Internet com a Justiça portuguesa, estou pronto. Eu nunca tinha visto alguém tão longínquo a ser julgado, não um foragido, não à revelia. Ele falava amigavelmente em directo, a voz enlatada. Era como uma reunião de família em tempos de pandemia, desta minúscula sala de julgamentos para um parente na diáspora portuguesa (que também se faz de crimes). Nasceu em 1962, é casado, a mulher está com ele, têm dois filhos de 31 anos e 29 anos. Os dois têm vida independente e trabalham, um detalhe muito importante a guardar para o fim. O homem, alentejano, é solicitador. Em Angola não existe a profissão, e ainda bem porque tem a licença cancelada em Portugal, mas o seu trabalho é igual. Recebe uns 1500 euros, mas em kwanzas. Em Portugal, roubou 30 mil euros a uma empresa.

– Diz aqui que é acusado da autoria material de um crime de peculato, disse a juíza.

– Muito bem. É verdade.

– É?!, exclamou a juíza.

Nem sempre se apanha o ratinho à primeira, nem com queijo é tão raro alguém confessar-se assim, mostrava a voz da juíza.

– É verdade!, cantarolou o homem em Angola.

Logo se passou dos factos às consequências morais:

– Está arrependido da prática dos factos de que vem acusado?

– Claro que sim. Arrependido. Bastante arrependido.

Mais tarde, falou o advogado de defesa. Até a terra tem uma atmosfera envolvente, é nela que respiramos e vivemos.

– Bom dia, senhor José. Quero que nos diga um bocadinho o que, no fundo… o que é que o levou a praticar estes factos, quais as circunstâncias, o contexto em que isto sucedeu.

O homem em Angola estava cheio de vontade de explicar a sua atmosfera envolvente. Saiu-lhe de um sopro.

– Ok, ok. Pronto, eu trabalhava como solicitador e tinha… fazia muito crédito à habitação. Com a crise da bolha imobiliária, que começou nos finais de 2007 e 2008, e que se prolongou e chegou a Portugal em 2009, 2010… 11, 12, 13… fiquei praticamente sem rendimentos. Nessa altura tinha os meus filhos a estudar, a minha filha foi tirar Medicina na República Checa, o meu filho estava a … e tiraram!

A filha é médica num hospital de Lisboa, o filho economista. Já a empresa que roubou, olha, faliu.

“Como a situação já estava muito adiantada, a minha filha já estava no quinto ano, eu, numa situação de desespero, mesmo já completamente aflito, fui levado um pouco a fazer isso… mas sempre com a intenção de devolver o dinheiro, de pagar… eu queria era trabalhar durante esse período difícil da bolha imobiliária e da crise. E sempre esperei fazer esse pagamento e que a coisa não chegasse até aqui. As coisas complicaram-se e então vi que a única possibilidade era vir para Angola, para refazer a vida, para ter possibilidade de cumprir com as obrigações que tinha. Entretanto, as coisas aqui em Angola também se complicaram. Quando vim em 2014, um euro custava cem kwanzas e hoje custa 800! As coisas melhoraram, trabalhei, consegui algum dinheiro, consegui mudar de emprego em 2017/18. Podia até ser muito melhor se não fosse esta coisa da covid. Aqui ainda está tudo fechado, a trabalhar a 50%. Mas sinto que agora comecei a ter alguma capacidade financeira para resolver este problema que, sinceramente, foi um deslize da minha parte, todos temos deslizes na vida, mas este foi o maior deslize da minha vida, embora me pareça que tenha sido por uma causa… eh pá! Compreensível! Mas o crime foi cometido, disso não posso fugir, é verdade. Agora tenho de resolver o meu problema. É uma coisa que para mim próprio eu preciso. Atendendo a toda a minha vida familiar, que, embora com todos os problemas que temos tido, conseguimos estar sempre unidos e com uma vida equilibrada. A nível de amigos, a mesma coisa. Tenho amigos há 40 e tal anos. Há aqui uma certa integridade que quero manter.”

Então não há, claro que há, senhor solicitador, é compreensível! Fôssemos nós tão íntegros como o senhor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)