Alimentação intuitiva. A prática de comer o que quiser e quando lhe apetecer

O ponto mais importante desta abordagem está em aprender a distinguir a fome física da fome emocional

É uma abordagem alternativa à dieta, que nos ajuda a conectar-nos com o nosso corpo. Aqui não há alimentos bons ou maus, trata-se de comermos de tudo sempre que temos vontade. O segredo está em aprendermos a ouvir os sinais de fome (fome física e não emocional) e a saber reconhecer quando estamos saciados. Difícil? Muito. Mas há benefícios? Sim, sobretudo para a autoestima e bem-estar.

Decidir o que comer, para fazer uma boa alimentação, parece um desafio cada vez mais complicado. Há informação em barda, modas, dietas, a paleolítica, a mediterrânica, o jejum intermitente, mil e uma teorias a somar-se à pressão do corpo ideal, de um estilo de vida saudável. Mas, recentemente, tem surgido muito interesse em torno de uma nova abordagem, que é uma espécie de contraciclo num mundo de regimes alimentares restritivos. Chama-se alimentação intuitiva e baseia-se na ideia de que o nosso corpo sabe exatamente aquilo que precisa, só temos de aprender a ouvi-lo. O que, na verdade, é bem mais difícil do que parece – lá iremos. O termo não é assim tão recente, foi popularizado num livro de 1995, porém ganhou força nos últimos anos à boleia dos movimentos de aceitação corporal e da rede social TikTok, fértil a lançar tendências.

Mas, afinal, o que é isto da alimentação intuitiva? “É uma abordagem alternativa a uma dieta, que promove uma relação mais saudável com a comida – até porque a alimentação é um fator de stress para muita gente – e rejeita dietas restritivas. É o oposto da abordagem tradicional, que normalmente tem o foco em emagrecer”, explica Sara Timóteo, nutricionista. Ao contrário do que acontece numa dieta, em que há um plano alimentar rígido que o nutricionista desenha e que nos limitamos a seguir, este conceito requer um papel bem mais ativo por parte de cada um. Na prática, consiste em comer o que queremos sempre que sentimos fome e pararmos quando estamos saciados. “Sendo certo que se a pessoa tiver um estilo de vida normal, em que dorme durante a noite e está acordada durante o dia, vai tender a sentir fome de manhã, ao almoço e ao jantar.” Mas cada caso é um caso, há pessoas que fazem duas refeições por dia e ficam bem, outras que precisam de fazer cinco. Dito isto, comecemos pelo princípio. Apesar de não parecer, há regras. Aqui não há alimentos proibidos, o segredo está em sabermos ouvir os nossos sinais de fome e de saciedade. “Olhemos para um bebé, quando quer comer chora e quando está saciado pára de mamar. Só que, à medida que vamos avançando na idade, os pais ou educadores decidem quando e a quantidade que devemos comer. Já todos ouvimos ‘só sais da mesa quando acabares de comer’. Isto começa a alterar a perceção que a criança tem da saciedade e da fome, porque está a seguir regras externas. E desconstruir estas crenças leva tempo.”

A questão que se impõe é: podendo comer tudo o que nos apetece, não há o risco de acabarmos a comer só fast food e doces? Sara Timóteo garante que não. “Quando as pessoas se permitem comer todos os alimentos, percebem que o corpo não está sempre a pedir doces. O facto de termos alimentos proibidos ou alimentos que só comemos em dias de festa é que cria em nós uma urgência de os comer, devido à sensação de escassez.” Muitas vezes, defende, é isso que nos leva a comer uma tablete de chocolate de uma só vez. É a velha máxima de o fruto proibido ser o mais apetecido, que acaba a ditar o falhanço de muitas dietas. E, assegura a nutricionista, o nosso corpo vai pedir batatas fritas, é certo, por ser um alimento hiperpalatável, “mas também vai pedir água, legumes, fruta, alimentos que nos dão energia” e sensação de bem-estar.

O ponto mais importante desta abordagem está em aprender a distinguir a fome física da fome emocional. É sabido que usamos, muitas vezes, os alimentos como conforto, “há pessoas que comem por se sentirem tristes, stressadas, entediadas”, e há que saber identificar os gatilhos que nos levam a comer sem efetiva fome e ter estratégias para contornar esse ímpeto (como beber água ou dar uma caminhada). Também há que aprender a identificar quando estamos saciados, “para nos sentirmos bem não vamos comer até ficarmos empanturrados”. Um processo que requer tempo e que implica ajuda, “o primeiro trabalho é psicológico”. Regra de ouro: isto não se faz sozinho, não é como clicar num botão, é um trabalho a três, entre cliente, nutricionista e psicólogo.

A culpa, o desporto, os benefícios

Tânia Miguel Soeiro, especialista em nutrição clínica, subscreve-o e detalha que a alimentação intuitiva é um método que “tem validação científica”, mas que “é muito complexo” e que implica sempre “acompanhamento profissional”. “Esta abordagem tem uma perspetiva muito comportamental e emocional. E embora possa não parecer, mesmo havendo espaço para comer de tudo, está muito associada a uma alimentação equilibrada, com porções corretas, exige muita literacia alimentar e nutricional, para saber fazer escolhas.” Ou seja, “não significa comer tudo o que me apetece, sempre que me apetece, até ficar a rebolar, significa sim comer quando tenho fome, respeitar os sinais de saciedade e fazer escolhas conscientes, sem ter alimentos proibidos”. Aliás, a nutricionista nunca recorre aos termos de ‘alimentos proibidos’ ou ‘junk food’. “Nenhum alimento é lixo. Sei que comer batatas fritas não é tão saudável como comer batatas cozidas, e vou conscientemente gerir as vezes em que como batatas fritas, mas não me vou impedir de as comer se me apetecer.”

Na teoria pode parecer fácil, só que na prática é bem mais difícil. E a culpa entra nesta equação, enraizada há anos na cultura da dieta. Tanto que nos habituamos a criar estratégias compensatórias. “Se comi de mais, ou comi “junk food”, vou fazer atividade física para compensar” é um pensamento habitual. Eis outra regra da alimentação intuitiva: olhar para a atividade física de forma positiva. Ou seja, uma vez que sabemos que ser ativo nos faz sentir bem física e mentalmente, importa fazer aquilo que gostamos, seja andar, correr, andar de bicicleta, dançar, “porque é divertido e não porque comi de mais ontem”, segundo Sara Timóteo. E sim, aponta Tânia Miguel Soeiro, “é verdade que temos cada vez mais casos de diabetes, de obesidade, de hipertensão, mas, se estamos a aumentar a prevalência destas doenças, isso prova que as dietas restritivas em que se tem investido nem sempre são a resposta”.

Aqui chegados, importa salientar que a alimentação intuitiva não é para todos. Quando há restrições alimentares, por exemplo, é difícil de pôr em prática. É o caso dos doentes celíacos. Num outro espetro, quando há distúrbios alimentares, como a anorexia, não é aconselhável. De acordo com a nutricionista Joana Daniela Teixeira, “para pessoas que têm os níveis de saciedade desregulados, alguma compulsão alimentar” também é um campo perigoso, que exige um longo trabalho. Contudo, é uma opção viável para uma boa parte da população, que se baseia na aceitação do corpo, no respeito pelo corpo. Quanto a emagrecer – e embora alguns nutricionistas defendam que, por promover uma relação mais saudável com a comida (o conceito de comer apenas de acordo com as necessidades), pode ter resultados -, Joana sustenta que esta abordagem “não é tanto para perder peso, porque isso implica sempre uma restrição calórica, é mais para uma fase de pós-perda de peso, pós-dieta e também para quem está no peso ideal, que permite fazer escolhas alimentares que garantam o bem-estar”.

Então quais são os benefícios? São simples. A alimentação intuitiva está associada a uma imagem corporal positiva, a mais autoestima e bem-estar. A par disso, um estudo publicado em 2022 concluiu que os indivíduos que praticavam a alimentação intuitiva eram menos propensos a terem comportamentos prejudiciais, nomeadamente a tomar medicamentos para emagrecer ou à compulsão alimentar. “Também sabemos que comer por razões físicas e não emocionais está associado a uma maior ingestão de vegetais”, acrescenta Joana. “No fundo, é confiar no nosso corpo e ter uma relação positiva com a comida”, conclui.