Joel Neto

As cadeiras de Van Gogh


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Estava convencido de que seria o progenitor que ensina. Nos meus planos silenciosos, acalentados até em momentos da vida em que ainda nada indicava que me tornasse pai, acordava de manhã, acorria ao despertar do meu filho – ou da minha filha, às vezes era uma menina – e desatava a ensinar-lhe coisas: como ir deitar a fralda suja ao lixo, como apertar os atacadores dos sapatos, como conferir as horas, como pôr a mesa sem se esquecer da chávena de café do papá e da taça de iogurte da mamã, como misturar os corn flakes e discutir distraidamente as notícias da BBC que ouvíamos em fundo. Falaríamos em várias línguas, como é natural, e tanto poderíamos usá-las para declamar poesia como para discutir os cem dias a que se resumiu o regresso de Bonaparte ao poder, a importância do sistema endócrino no funcionamento do corpo humano ou a obsessão de Van Gogh com cadeiras (coisas que também seria eu a ensinar-lhe).

Afinal, acordamos de manhã e a primeira coisa que faço é enchê-lo de beijos. Às vezes o despertador do meu telefone toca antes dele e fico ali a pensar: nunca mais acorda para eu o encher de beijos. Mesmo quando é a Marta a fazer-lhe a higiene matinal, na primeira oportunidade atravesso-me e encho-o de beijos. E, quando sou eu a levá-lo à creche, na maior parte das vezes vamos os dois por aquele passeio fora, para lá do corrimão, e ainda estou a enchê-lo de beijos.

E não é que eu não lhe ensine coisas. Se pensar bem, até sou capaz de me gabar de uma coisa ou outra que lhe ensinei, ou que ele aprendeu comigo. E também não é – menos ainda – que a Marta não o encha de beijos também. O mais provável é que seja ainda mais beijoqueira do que eu, para benefício dele e até meu. Mas, ao mesmo tempo, o Artur ainda mal fez um ano e meio e há meses que come sozinho, à colher e até de garfo. Ao pequeno-almoço, já nem sequer deixa cair nada. Entretanto, deita coisas no lixo, arruma objectos que usou, transporta coisas que é preciso transportar, diz novas palavras todos os dias. E a maioria dessas coisas é a Marta que lhe ensina. Serena, mas metodicamente – aproveitando todos os ensejos para lhe acrescentar alguma coisa. Isto enquanto eu, à primeira oportunidade, lhe abro os braços, digo:

– Artur, dá um abraço ao papá.

E, enquanto ele me dá um abraço, pescoço com pescoço, batendo-me ao de leve nas costas com a palma da sua mãozinha, adorável, encho-o de beijos.

Não vai ser uma adolescência fácil. Felizmente, ainda faltam uns anos. Mas esta noite estou na Graciosa, longe de casa, e só me apetece voltar para casa e enchê-lo de beijos. A ele e a ela, na verdade.