Jorge Manuel Lopes

Berlim e Ibiza, licra e maresia


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Nascida vai para 33 anos na Coreia do Sul, a compositora, produtora e DJ Peggy Gou necessitou de se mudar para Londres aos 14 anos para mergulhar na cultura clubbing. Bendito mergulho. Tornou-se residente em Berlim desde 2014, mas foi ainda na capital britânica que começou a dar banda sonora às noites. Entretanto, tornou-se um dos nomes mais fortes da música de dança global, fundou uma editora (Gudu) e uma marca de roupa (Peggy Goods), e passou os últimos oito anos a entregar EP, singles e remisturas. Chega finalmente o álbum de estreia, “I hear you” (XL/Popstock), no essencial um tributo ao house dos anos 1990, em especial ao house-pop, um sortido familiar e virtuoso, de uma frescura e desenvoltura notáveis.

“I hear you” é um álbum blindado nos argumentos, dez canções (sim, canções) sem margem para devaneios ou excessos. (Pelo contrário: a brevidade de alguns temas implora por mais tempo para explanar ideias.) Até o casting é adequado, arrancando um desempenho imaculado, de diva, a Lenny Kravitz, num dueto em “I believe in love again” que parece inverter os papéis vocais mais tradicionais. O tema é movido pelo som do Korg M1 que hoje é muito lembrado pelo êxito house-pop “Show me love” de Robin S., de 1993 – a mesma base da deliciosa “(It goes like) Nanana”, um dos hinos simples, simplicíssimos, de 2023.

Até o escasso hip-hop que por aqui passa, em “All that”, graças ao rapper porto-riquenho Villano Antillano, vem do precioso instante, há trinta e tal anos, em que o género dançou com o house. A este caldo há que juntar, em “Lobster telephone”, um cintilar mecânico do freestyle latino da década de 1980, um pozinho de aspereza electroclash dos anos 2000, um borbulhar acid house e qualquer coisa, subtil, do sentido de orquestração dos Pet Shop Boys (não é caso único: “I go”, que já vem de 2021, avança por caminhos idênticos e também evoca a dupla Tennant/Lowe). Logo a seguir, drum ‘n’ bass em “Seoulsi Peggygou”. Soltando-se as rédeas no final, numa celebratória “1+1=11”, tecno quase apoteótico, popular, imediato, minucioso. Em “I hear you”, a síntese de eras e estímulos dançáveis é feita com afeto, gosto, prazer.