Como os ecrãs e a música afetam as refeições

“O maior impacto em pessoas com consumos alimentares excessivos prende-se com a probabilidade de haver um maior consumo de alimentos e escolhas alimentares menos saudáveis”, reconhece Rita Azevedo, nutricionista no Grupo Trofa Saúde

O impacto social será o mais óbvio, mas também há consequências ao nível da própria digestão - que podem ser particularmente extremadas no caso das crianças. E nem o excesso de peso fica arredado desta equação.

Num tempo em que os ecrãs dominam grande parte do nosso dia a dia, a dependência tende a invadir até os momentos dedicados à refeição. Jantar a ver uma série – seja no smartphone ou na televisão -, almoçar enquanto se responde à lista infindável de emails pendentes ou ver uma criança pequena num restaurante de olhos esbugalhados perante os desenhos animados, enquanto os pais procuram aproveitar o deslumbramento para lhe dar a comida, são todos cenários cada vez mais comuns. E se a era da tecnologia, do individualismo e do imediatismo ajuda a explicar o fenómeno, vale a pena olhar, sobretudo, para as consequências.

Que se manifestam, desde logo, a nível nutricional. Rita Azevedo, nutricionista que trabalha no grupo Trofa Saúde, explica o que está em causa. “O maior impacto em pessoas com consumos alimentares excessivos prende-se com a probabilidade de haver um maior consumo de alimentos e escolhas alimentares menos saudáveis. Ou seja, a distração com o ecrã não só pode levar ao “consumo de maiores porções de alimentos, comendo mais do que o necessário”, como a “escolhas menos saudáveis e de preparação rápida”. Tudo porque, neste contexto, o foco está no ecrã, não em apreciar o momento da refeição.

Mas há mais. A distração vai provocar também “uma mastigação inadequada dos alimentos, que pode afetar a digestão – gerando desconforto intestinal – e a absorção de nutrientes”. E ainda há uma terceira implicação. “Por vezes, as pessoas comem mais rápido, o que pode resultar em menor promoção de saciedade e aumento da probabilidade de comer em excesso.” Um estudo apresentado recentemente pela Associação de Psicologia Americana (APA) dava até conta de que o hábito de ver vídeos ou de jogar no telemóvel durante as refeições se traduzia num aumento da ingestão de guloseimas – chocolates, salgadinhos e afins – durante a tarde. E tudo por causa da tal sensação de “menor satisfação e saciedade”, admitida pelos participantes no estudo.

Alberto Lopes, neuropsicólogo e hipnoterapeuta, ajuda a compreender os mecanismos que subjazem a este fenómeno. “Os smartphones e os ecrãs têm um efeito muito similar à hipnose. Ambos provocam distorção temporal, levam a que a pessoa se abstraia do ambiente periférico e estimulam a nossa imaginação. É uma espécie de transe. E isso faz com que não desfrutemos dos sabores e das texturas. A comida acaba por funcionar como uma almofada para colmatar carências internas. Quando damos por nós, já comemos três ou quatro sandes e nem sequer desfrutámos da refeição como seria expectável.”

As consequências de tudo isto são óbvias. Vale a pena realçá-las, ainda assim. “A combinação do maior consumo alimentar, escolhas alimentares menos saudáveis e uma menor perceção de saciedade pode contribuir para o aumento de peso e a obesidade”, alerta Rita Azevedo. Curioso é constatar que o efeito observado também pode ser o oposto. “Em pessoas com diminuição de apetite, a distração associada aos ecrãs leva a um menor consumo alimentar. No momento da refeição, focam-se no que estão a ver ou a ouvir, distraindo-se com muita facilidade.” E isso faz, claro, com que comam menos.

As consequências são particularmente vincadas no caso dos mais pequenos. Ana Rita Sousa, especialista em nutrição infantil, lembra que os ecrãs são amiúde utilizados para fazer com que as crianças comam mais. E se num primeiro momento o truque até “parece funcionar”, a longo prazo há consequências. Desde logo o facto de se criarem hábitos alimentares pouco saudáveis, porque “crescem a comer apenas quando estão distraídas”. A especialista dá como exemplo o caso de vários familiares e amigos que têm sempre de ter a televisão ligada durante as refeições. Em todos os casos, quando começa a fazer perguntas, percebe que são coisas que vêm de trás. Além, claro, da redução da consciência motivada pelos ecrãs, que pode levar a consumos excessivos. Acresce que “algumas crianças até podem mastigar mais rápido, o que pode provocar desconforto gastrointestinal, inchaço ou até vómitos”. “Não mastigam, engolem o alimento inteiro e a digestão não é feita como deve ser. Além de que a absorção de vitaminas não é igual.”

Ana Rita Sousa admite que esse é um toque de despertar frequente. “Há pais que só deixam de fazer isso [usar os ecrãs à refeição como ‘ajuda’ para comer melhor] quando a criança começa a vomitar por comer demasiado rápido.” Para lá destes processos mais fisiológicos, há a questão do desenvolvimento cognitivo. “Aquele momento de convívio e a conversa com os pais à mesa é importante para estimular o desenvolvimento. Se privamos a criança desse momento, isso tem um impacto.” E não só no caso de bebés ou crianças pequenas. “Mesmo no caso dos adolescentes, há estudos que mostram que, se não fizerem as relações em família, há uma maior probabilidade de virem a ter comportamentos de risco como o álcool e as drogas.” Ou mesmo distúrbios alimentares como a anorexia ou a bulimia. Sobretudo no caso de pais que trabalham muito, as refeições podem ser “uma das poucas oportunidades para partilhar momentos e criar laços”. Por isso, a nutricionista não tem dúvidas: telemóveis são para ficar arredados das refeições. E isto serve para miúdos e graúdos. “Os adolescentes já não têm grande disposição para falar. Se quando o fazem os pais estão distraídos com o telemóvel, terão cada vez menos vontade de o fazer.”

Alberto Lopes entende mesmo que a parte social será sempre “a mais afetada”. “Há consequências inegáveis ao nível da família e da interação. Quer queiramos quer não, os telemóveis são hoje uma extensão de nós. Quando estamos distraídos com eles, perdemos a oportunidade de partilhar experiências diárias e problemas que nos apoquentam, momentos valiosos de conexão social e emocional. A conversa desaparece, a união emocional também e fica uma espécie de diálogo de surdos, em que o foco é o ecrã.” Também ele considera que o problema é particularmente gritante no caso das crianças, porque desta forma “não reforçam a ligação à família”. Ao invés, criam “comportamentos evitativos”. “Acabamos por nos tornar ilhas”, resume o neuropsicólogo.

E quanto à música? Pode ser uma “faca de dois gumes”, entende. Porque se, por um lado, pode trazer “emoções positivas e bem-estar, sobretudo se se tratar de uma canção alegre, que nos deixa bem-dispostos”, em reuniões familiares “pode não ser o mais adequado”. Sobretudo se pelo volume ou género funcionar como um entrave à comunicação. Já se falarmos de uma suave música de fundo, num volume que não perturbe a conversa, o caso é distinto. “Tipicamente as músicas mais calmas [música ambiente] podem fornecer um ambiente de tranquilidade no momento da refeição”, considera Rita Azevedo.

Acima de tudo, sublinha a nutricionista, é preciso lembrarmo-nos de que “o ato de comer não é apenas uma necessidade física, mas também uma experiência social e emocional”. “O momento da refeição deve ser um ambiente calmo, sem distrações, e se possível em família ou com amigos, promovendo vínculos sociais”, reforça. Alberto Lopes defende mesmo que o telemóvel deve ser deixado numa divisão adjacente. E nunca pousado sobre a mesa. “Porque se está em cima da mesa a mensagem que estou a passar é: ‘Vocês são importantes para mim, mas o meu telemóvel é mais. Se receber uma mensagem ou uma notificação eu vou olhar, independentemente daquilo que estivermos a falar.”