Margarida Rebelo Pinto

Desfazer as malas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

De vez em quando dá-me a nostalgia daquela que escolhi como a cidade do meu coração e cruzo o Atlântico em direção ao Rio de Janeiro, onde o verão vai passar o inverno, porque lá o frio nunca chega. Chegam as chuvas que tudo inundam, chega o vento que levanta as ondas e a areia na orla, mas frio foi coisa que nunca senti e já lá fui mais de 10 vezes. O Rio, como diz quem lá vive ou muito o visita, continua lindo, selvagem, brutal, desarrumado, de sunga e de biquíni, de t-shirt amarrotada e de chinelo no pé. O Rio é pão de queijo, água de coco, são surfistas no Arpoador e os vendedores ambulantes de biscoito globo e espetadinhas de camarão.

Vi o Rio menos desarrumado, mas não menos caótico, durante o período que antecedeu os Jogos Olímpicos em 2016. Dizem os cariocas que desde então a cidade deu uma “caidinha”, não sei se bem, se suave ou a pique, porque o português do Brasil possui a arte dos eufemismos, reforçada pela infinita criatividade linguística que é talvez a mais encantadora característica do nosso idioma a sul do Equador. Dar uma caída é o mesmo que cair, mas com uma construção frásica mais criativa. Com o sotaque é igual; melodioso e dengoso, generoso nas vogais, para nos mostrar que a nossa língua se pode tornar tanto mais bela quanto mais geografia conquista. Nesta viagem tropecei num livro maravilhoso – “Enquanto a noite não chega” – que me deu a descobrir o autor Josué Guimarães, o escritor gaúcho mais importante do século XX depois de Erico Veríssimo. Desde a primeira linha, apaixonei-me pelo triste quotidiano de Dom Eleutério e de Dona Conceição, entregues à solidão da velhice, reféns de uma cidade abandonada e da perda de todos os filhos, amigos e parentes que vão recordando ao longo da narrativa, entre ataques de tosse, dores nas articulações e goles de chá mate para reavivar o estômago e a memória. A única companhia que lhes resta é Teodoro, o coveiro da cidade esquecida que os visita com frequência. Um dia, Teodoro não vem, logo quando Dona Conceição conseguiu a proeza de fazer pão sem fermento. Estranhando a ausência, iniciam uma caminhada ao encontro do único sobrevivente que os recebe moribundo no seu pequeno casebre. Poucas horas depois de chegarem, Teodoro desencarna deste Mundo. Esgotados da viagem, mas sobretudo do desgosto de todos os que perderam e da velhice que os devora, o casal de mãos dadas é levado pela carruagem da morte de forma suave e bela, num texto da mais sensível prosa poética que já li. É o anjo da morte que enfim embala as almas, numa visão serena, própria de quem já viveu tudo, entregando-se docilmente ao inexorável destino de todos os vivos. Há muito que não me comovia tanto com a palavra escrita. Nas últimas linhas, quis abraçar os personagens vivendo com eles o derradeiro adeus a este Mundo.

Quando cheguei a casa, trazia ainda o livro junto ao peito, onde guardei o passaporte. Repousa agora na minha mesa de trabalho e olho para ele com carinho. Nada como a magia da literatura para nos fazer voar, sonhar, sentir, chorar, viajar. Nada como uma história bem contada para expandir no coração a capacidade de amar a condição humana.