Margarida Rebelo Pinto

Má fortuna, amor ardente


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O maior génio da poesia portuguesa, o único poeta tão lírico quanto épico, esquecido pelas pseudo elites culturais e apenas preservado nos programas escolares , terá nascido há 500 anos, mas a efeméride foi esquecida pelo Governo socialista que nada preparou para a data.

Ainda cresci sob a influência enaltecedora dos mitos de Teófilo Braga, que se dedicou ao fortalecimento dos heróis nacionais pela via literária como Viriato, o ágil e astuto guerreiro, lusitano indómito que venceu seis cônsules e respetivas legiões, acabando por sucumbir às mãos de traidores. Os tempos de Teófilo eram de exaltação e de patriotismo sem pudor, ninguém sentia que tinha de pedir desculpa pelas conquistas de uma nação que só logrou a grandeza e o reconhecimento para lá das fronteiras peninsulares.

Voltemos a Camões, que nunca perdeu o cognome de poeta zarolho, agora promovido a cego, como se as características físicas se sobrepusessem à sua obra ímpar e genial. É certo que era dado à briga fácil de espada erguida, terá sido assim que perdeu um olho numa rixa no Porto, bem como à luxúria sem grande critério na escolha dos alvos femininos para consumação da sua lascívia. A história retrata-o como um homem de excessos e de difícil convivência. E então ? Nunca conheci nenhum génio que gostasse de arrumar os pratos na máquina da loiça ou de trocar a roupa de cama e de bater as almofadas. Antes fogoso do que frouxo, melhor ser arriscado do que prudente, pois é sempre maior aquele que abraça os erros do que o que finge não os ter cometido.

Depois de oito anos de desgoverno socialista e de pouco mais de 60 dias em que o novo Governo social-democrata agiu em todas as frentes para emendar o caos anterior, o povo deu-lhes quase a mesma votação. Talvez os portugueses já não gostem de heróis e prefiram os poetas neuróticos, míopes e enfezados que escrevem cartas de amor ridículas e choram o mal-estar e a mesquinhez nacional, por serem mais parecidos com a nossa pequena dor à portuguesa.

Camões foi demasiado grande para a faixa de paraíso onde nasceu. Neste jardim enfeitado de belas ilhas ao largo, não se pode ser poeta , aventureiro, marinheiro, sedutor, crítico lúcido do poder político e esperar a aceitação do próximo. Camões foi tudo isto e tudo muito, num lugar em que só se pode ter uma habilidade, exercida de preferência com algum cinismo e já agora com artimanhas de falsa modéstia, porque a genialidade é vista como uma bizarria que amarfanha o mediano cidadão.

Celebrar a vida e obra de Camões podia ao menos servir para resgatar na alma lusa o orgulho de um povo corajoso que chegou mais longe do que qualquer outro. O poeta também chegou longe, ao tocar a eternidade. Vale mais do que uma moeda e merece um aeroporto.

Não esqueçamos que somos um país de poetas maiores e que a História será sempre construída por heróis, ainda que ser valente pareça estar fora de moda.