Margarida Rebelo Pinto

Mais raposas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Um dos cinco livros que figura nas listas dos mais vendidos no Mundo é também um dos cinco que eu levaria para uma ilha deserta. Refiro-me à obra “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry, que narra as aventuras de um rapazinho solitário por galáxias inventadas, espelho da solidão intrínseca do autor. É complicado explicar o quão importante é a solidão para qualquer mente criativa. Sem ela, nenhum escritor consegue trabalhar. Precisamos tanto desta entidade misteriosa quanto do ar que respiramos, mesmo que o trabalho continuado ganhe peso ao longo dos anos por via da mesma. Tratamos o silêncio por tu e quando estamos demasiado tempo longe da mesa de trabalho, sentimos tristeza, ansiedade e angústia, como se o nosso propósito de vida se esvaziasse. A pior coisa que pode acontecer a um escritor é perder a vontade de escrever. Mas a existência tem o hábito providencial de entregar de bandeja material em forma de sonho e de sofrimento, matérias-primas que ele transfigura para o papel. Para ser escritor, é necessário conviver com a ilusão e a espera e ter coragem para abraçar a ausência, a desilusão, a tristeza e o luto dos sonhos perdidos. O escritor usa todos estes ingredientes para personagens e cenários que, sendo ficção, têm origem em experiências reais.

A caprichosa e frágil flor que o Principezinho tenta perceber e cuidar com amor e carinho pode muito bem ser Consuelo Suncin Sandoval, o grande amor da vida de Saint-Exupéry, com quem casou aos 30 anos. Foi ao seu lado, em Nova Iorque, em 1942, que escreveu a obra-prima que o consagrou. A deambulação do Principezinho pelo éter com o desejo de voltar a casa terá sido um bálsamo para o escritor ao ver a sua França ocupada pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Um ano antes de o conflito terminar, o avião que pilotava desapareceu durante uma missão de reconhecimento ao largo da costa de Marselha. Os restos do aparelho foram recuperados 60 anos depois. Tal como o Principezinho na história, o seu corpo nunca foi encontrado. A realidade imitou a ficção e Saint-Exupéry, como era tratado pelos amigos, não viveu para ver a Europa livre do jugo nazi. Viajante infatigável e eterno aventureiro, o escritor e a personagem acabam fundidas no tempo.

Entre todas, a minha preferida é a raposa, pela sua inteligência, sabedoria e generosidade. Em oposição à rosa mimada, representa o amor altruísta: tornamo-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos. O verbo da versão original, apprivoiser, não resulta tão belo em português se obedecermos ao critério da literalidade: domar. Por isso, prefiro a tradução livre, que me soa mais verdadeira. A raposa sentia pelo seu amigo uma profunda e incondicional amizade, que é uma forma de amor maior.

O Mundo precisa de mais raposas e os livros eternos constituem um dos mais raros e belos legados da Humanidade. Cabe-nos a todos preservá-los para todos os futuros possíveis que se redesenham a cada instante.