O Circo montou a tenda em Famalicão. E está para ficar

É a primeira escola de formação circense no norte de Portugal, que tem vindo a crescer e a fazer nome lá fora, tanto que 90% dos alunos são estrangeiros. Chegam com o futuro sabido: querem ser malabaristas, trapezistas, acrobatas. O Instituto Nacional de Artes do Circo tem morada em Famalicão e também é lugar de criações e residências artísticas. Tem espetáculos que percorrem o país, desenvolve festivais, abre as portas a jovens com deficiência. Agora, quer abrir um centro ibérico e lançar o primeiro curso de Ensino Superior nesta área. O céu é o limite.

Sexta-feira, são onze da manhã, dois pavilhões enormes, um silêncio imaculado, há jovens de todos os cantos do Mundo aqui, ora no chão a treinar obstinadamente malabarismo, roda Cyr, pinos e equilíbrio de mãos, ora em altos voos encaixados em acrobacias aéreas, no trapézio, no tecido vertical, no mastro chinês. Andrea Maddalena Micheli está suspensa na lira, agarrada com as mãos àquele círculo aéreo que cai do teto, e as pernas esticadas, tão esticadas, a balançar para um lado e para o outro. Gira até ficar de cabeça para baixo e faz uma espargata no ar. É italiana, já se desenrasca no português, está no Instituto Nacional de Artes do Circo (INAC), em Famalicão, a primeira escola dedicada ao circo contemporâneo no norte do país, criada em 2017. “Estou a preparar o show de grupo”, explica ela. O Curso Profissional em Artes do Circo do INAC tem dois anos, Andrea está no final do primeiro, altura em que os alunos apresentam um espetáculo conjunto. Quer ser artista de lira circense, disso não tem dúvidas.

As pernas agarram o círculo e deixa o tronco cair. “Isto exige força, flexibilidade, resistência. Também equilíbrio.” É difícil? “Para mim, as outras disciplinas parecem-me mais. Ando sempre com negras, porque o corpo bate na lira. Mas é aqui que me sinto bem.” Esta história começa em Itália, na cidade de Piacenza. Os dois irmãos mais novos encantaram-se pelo circo depois de verem acrobacias num festival, decidiram ter aulas, Andrea viu o quanto eles se divertiam, quis experimentar também, rendeu-se à lira. “Estava a acabar o Secundário e tinha de decidir o que fazer depois. A minha professora de Circo em Itália foi aluna no INAC e falava muito da experiência dela aqui.” Decidiu candidatar-se, entrou, fez as malas e voou para Portugal. Tem 20 anos e um ar angelical a contrastar com a rebeldia do longo cabelo lilás, rapado nas laterais. Experimentou outras disciplinas no INAC, malabares, trampolim, pinos, nada foi capaz de suplantar a paixão pela lira. A mãe não tanto, mas o pai ficou receoso quando a viu decidir-se pelo circo, aflito sobre o futuro, amarfanhado pelo medo do que será a vida depois. Andrea descomplica. “Depois do curso, vou tentar candidatar-me a companhias, também gostava de fazer uma residência artística, de criar o meu próprio espetáculo.”

Felipe Algo, costa-riquenho que está prestes a concluir a formação e que espera, no final, ficar em Portugal

O INAC tem à volta de 75 alunos, cerca de 90% são estrangeiros. Chegam da Alemanha, Espanha, Itália, Áustria, França, Grécia, Inglaterra, Costa Rica, Colômbia, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Cabo Verde. Também há portugueses, que vêm sobretudo de escolas artísticas, do Chapitô em Lisboa, do Balleteatro no Porto. É uma escola para alunos a partir dos 18 anos, há um Ano Técnico, espécie de preparação que pode ou não anteceder o curso profissional de dois anos. Aqui aprende-se malabarismo, clown, equilibrismo, aéreos, acrobacia, também dança, teatro. O curso, certificado pela Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho, custa 3750 euros por ano, muitos alunos pagam com trabalho para o INAC. “Nunca lhes tirámos o tapete a meio por não terem dinheiro”, garante André Borges, cofundador.

Mas é preciso rebobinar esta cassete para apanhar o fio à meada. O circo contemporâneo era (ainda é) um nicho e foi muito por isso que o INAC nasceu às mãos de André, de Bruno Machado e de Juliana Moura, numa declaração de amor a esta arte. Já todos estavam nestas andanças, sentiam que havia uma lacuna na formação. “Há uns anos, em Portugal, contavam-se pelos dedos das mãos os artistas de circo. Conhecíamo-nos todos pelo nome. Era uma coisa muito de família, das famílias do circo. Sempre foi uma arte marginal”, lembra Bruno. Os três abriram as portas de uma escola privada, o que lhes deu liberdade na pedagogia e o tempo encarregou-se do resto, tanto que a Direção-Geral das Artes hoje já reconhece o circo como disciplina artística. Pelo caminho, os festivais em Portugal multiplicaram-se. “A educação nesta área trouxe essa credibilidade”, completa Juliana.

Espetáculos, inclusão e um centro ibérico

Sete anos depois, o INAC é muito mais do que uma escola, cresceu em espaço, três mil metros quadrados, tem uma equipa com mais de 30 profissionais, residências artísticas, criações próprias. Há um espetáculo em digressão pelo país, chama-se “MUDA”, com direção artística de Clara Andermatt, que cruza o circo contemporâneo e a dança. Também criam festivais, um deles é o Circ’Bô, que vai ter a sua primeira edição em agosto, o palco são as serras transmontanas, a aldeia de Vilares de Vilariça, 90 habitantes, em Alfândega da Fé. Os sonhos voam alto e os planos agigantam-se. Estão a trabalhar para abrir um centro ibérico de circo em Famalicão, com salas de espetáculos, espaços de residência permanente (onde os artistas podem ficar alojados), uma área exterior para receber tendas de circo, em cooperação com escolas e companhias espanholas. O Município, que apoia o INAC, será parceiro, segundo o vereador da Cultura, Pedro Oliveira, até porque “é um motivo de valorização do território, de valorização da oferta cultural”. “É um projeto que está a ser trabalhado, falta encontrar o local e dependerá de fundos europeus.” O INAC ainda sonha criar um museu, para reunir acervo histórico de várias gerações de famílias de circo. Mais: quer abrir o primeiro curso de Ensino Superior do país na área do circo.

Maurício Jara, professor e artista de pinos e equilíbrio de mãos no INAC

Talvez Maurício Jara venha a ser professor aí. Para já, dá aulas de pinos e equilíbrio de mãos no INAC, onde também vai trabalhando nas suas criações enquanto artista. O segredo, revela, está no foco, na força mental, muito mais do que na força. Mas nada como mostrá-lo. Interrompe uma aula para ir numa corrida apressada vestir umas calças pretas e uma camisola de manga cava às riscas. Um aquecimento rápido e eis o pino, longos minutos sobre os braços, com as pernas esticadas, dobradas, esticadas outra vez. Depois só com uma mão, a girar sobre ela e espargatas aéreas. Trabalha em circo contemporâneo há mais de 14 anos, no final de 2017 foi convidado a dar aulas no INAC. Deixou a América Central, atravessou o Atlântico e por cá ficou (está a tentar naturalizar-se português).

O dom nasceu da obstinação, foi autodidata – “na Costa Rica não havia escolas de circo nem tradição de famílias de circo” -, aprendeu a fazer pinos sozinho, mais tarde em aulas de ginástica, a treinar e a treinar, obcecado que era pelo virtuosismo do equilíbrio. Não é ele quem diz, mas Bruno Machado desvenda que Jara é convidado para dar workshops pelo Mundo fora e ainda há umas semanas estava num festival italiano a apresentar o seu espetáculo a solo. “Além de dar aulas, já fiz parte de várias criações que nasceram na escola, aqui estamos sempre a trabalhar em grupo, deixamo-nos contaminar por este ambiente, é como se fizéssemos parte de uma companhia.” Maurício tem razão, o espírito no INAC vai muito além da formação. Basta ver que desde os primórdios recebe jovens com necessidades educativas especiais de instituições de Famalicão, uma proposta da Câmara. O projeto chama-se EnvolvARTE. “Recebemos desde alunos autistas a jovens com deficiência física, lembro-me de uma rapariga amputada de um braço que fazia acrobacia aérea. O objetivo era que este espaço fosse uma ferramenta de atividade física para estes jovens, não era formá-los profissionalmente, mas acabámos a descobrir muito potencial”, conta Juliana Moura. Pedro Freitas, 22 anos, foi uma dessas surpresas, é capaz de passar minutos infinitos aos saltos no trampolim. Entra no pavilhão despachado, olhar doce, sorriso fácil. Tem trissomia 21. O INAC lançou-lhe o desafio para fazer o Ano Técnico, acabou agora, oito horas de treino diárias, nunca faltou, em setembro entra no curso de dois anos. “A minha disciplina favorita é o malabarismo. Também gosto das acrobacias aéreas, dos pinos, do trampolim.” Desde que entrou pela primeira vez no INAC, em 2018, perdeu “talvez uns 30 quilos”, segundo Bruno Machado. E os pais? “Eles gostam, não têm medo que me aleije”, assegura Pedro.

Pedro Freitas, jovem com trissomia 21 que começou a aprender disciplinas do circo num projeto de inclusão e a quem o talento garantiu um convite para fazer o curso profissional

Se olharmos à volta, os treinos minuciosos de quem está no final do curso denunciam o nervosismo. Não é para menos, na próxima semana vão apresentar um espetáculo a solo, da sua autoria, na Casa das Artes de Famalicão. “O meu tem 19 minutos, é sobre o lado primitivo do Homem, que todos tentamos esconder e negar, mas que acaba sempre por se manifestar.” O costa-riquenho Felipe Algo está no alto do mastro chinês, o cabelo amarrado num puxo, a limar os últimos detalhes. E vasculha os ficheiros da memória em busca de uma justificação para um amor difícil de explicar. Recua a 2021, estava num festival, quando assistiu a um espetáculo de mastro chinês. “Fiquei fascinado com as acrobacias, sobretudo com aquela em que o artista se solta e pára quase já a tocar com a cara no chão. Vi as pessoas espantadas com esse lado impressionante, algo que não acontece tanto com a dança contemporânea, que é muito abstrata e tem mais dificuldade em ligar-se com o público. Decidi que queria fazer aquilo.” Tem 30 anos, desde os 18 que faz dança contemporânea, só que o circo atravessou-se no caminho. Começou a ter aulas de mastro chinês ainda na Costa Rica, a gostar cada vez mais, candidatou-se ao INAC. Não foi um acaso, a irmã mais velha tinha sido aluna do INAC, Felipe chegou a vir a Portugal assistir a um espetáculo dela sem imaginar que um dia seria a vez dele.

Quando se mudou para Famalicão, já tinha a experiência de ter estado numa escola de dança, de subir a palcos. Mesmo assim, anda consumido pela ansiedade do espetáculo a solo, a treinar dez horas por dia. E depois do curso? Os destinos variam, há quem procure formação superior lá fora, há alunos que se juntam e criam coletivos, outros tornam-se professores, também há os que ingressam em companhias de circo de renome, como o Cirque du Soleil. “Para já, vou fazer uma residência artística em Leiria. Depois, quero manter-me aqui em Portugal, ficar cá sediado, e viajar”, diz Felipe. Já se candidatou a audições de companhias, em alternativa talvez crie um projeto próprio. Uma certeza só: o futuro é o circo, a incógnita de uma vida itinerante, de treino implacável e exigente, mas que não trocaria por nada.