O dia a dia das crianças que não vão à pré-escola

Os tempos mudaram e o sistema de ensino procurou acompanhar realidades e necessidades. Há famílias que optam por outras possibilidades para os filhos em idade pré-escolar. Diana tem cinco anos e brinca no parque da aldeia. Manuela anda de bicicleta ao pé de casa. Sem modelo universal obrigatório, maior liberdade de escolha.

Diana tem cinco anos e anda à volta da plasticina a moldar formas para dar à mãe a provar, fazendo de conta de que é comida, numa quinta-feira a meio da manhã. Gosta de desenhar, de dançar, de brincar no parque, de ouvir histórias, começa a descobrir as letras. Não frequenta o pré-escolar. O irmão David tem 10 anos, também não andou na pré, está no 4.º ano no ensino doméstico, a aprender em casa numa aldeia de Marinha das Ondas, na Figueira da Foz.

A mãe, Anabela Cordeiro, e o pai, Yuri Muniz, optaram por não inscrever a filha no pré-escolar. “Acredito que os primeiros anos de vida de uma criança devem ser passados no seio familiar, com maior presença dos pais. Não é na pré-escola que aprendem aptidões sociais, em grupos de 20, 30 crianças, dentro da mesma linha de pensamento, a disponibilizarem sempre os mesmos brinquedos, os mesmos objetos”, diz Anabela Cordeiro. Quando lhe dizem que as crianças adquirem mais competências e conhecimentos de socialização na pré, torce o nariz. “As crianças precisam de um ambiente mais livre, de ir ao parque, à mercearia, a um museu, de estarem com a família, com os pais, de interação com a comunidade. Não é um ambiente protegido, é o confronto com a realidade.”

Manuela fez seis anos na semana que passou, em setembro vai para o 1.º Ciclo, até lá continua a passar os dias com a mãe, uma ou duas vezes por semana, quando pede, frequenta a Crescer C’Alma, comunidade de aprendizagem que privilegia o brincar livre e o contacto com a Natureza, em Leiria. A mãe, Maria Martinez, psicanalista, conta que a opção foi ficar com a filha até à entrada no ensino obrigatório. Pesquisou bastante sobre traumas que a separação nos primeiros anos de vida pode trazer aos bebés. Ela e o marido, Willian, tomaram uma decisão. Em novembro de 2022 mudaram-se do Brasil para Portugal.

Os dias são passados a brincar com bonecas e com brinquedos interativos, a correr e a andar de bicicleta, a pintar. Manuela, Manu como é tratada, gosta desses momentos, de ir ao parque de merendas, de correr ao ar livre, quando pede, a mãe leva-a à Crescer C’Alma para interagir com outras crianças. Maria está atenta ao que não é a regra, a alternativas nos modos e estilos de educar, valoriza emoções e sentimentos. “É difícil encontrar uma escola que se importe com os sentimentos das crianças”, refere.

Diana continua no seu brincar. Quando alguém lhe pergunta o que quer ser quando for grande, Diana responde que quer ter uma família. A mãe observa o ritmo da filha, o que lhe interessa e desperta curiosidade, o que quer saber. De manhã, o tempo é passado mais por casa, a acompanhar as atividades do David e as coisas que Diana quer explorar. Está numa escola de dança, onde vai uma vez por semana. As tardes são mais no exterior, no parque, a passear, a fazer uma caminhada, a visitar um museu ou um monumento, a ir às compras. No verão, dá para ir à praia. “Pequenos privilégios de poder trabalhar onde nos apetecer.”

No ano passado, iam os três uma vez por semana de comboio a Coimbra. “Diana aprendeu a andar na rua, a passar nas passadeiras, a parar nos semáforos, isso aconteceu de uma forma orgânica, mais uma aprendizagem que fez nos nossos passeios”, recorda Anabela. Na pré-escola, vê outras coisas. “Grupos que só saem da sala de mãos dadas, aos pares na rua, não há o depositar de confiança na sabedoria da criança. Queremos crianças autónomas e não lhes passamos autonomia. São estes pequenos pormenores que vão moldando a forma como a criança se vê.”

A imagem de uma criança ficar com um dos pais até entrar no 1.º Ciclo parece saída de um filme antigo, porque já não é habitual, porque deixou de ser a regra. Paulo Dias, neuropsicólogo e hipnoterapeuta das Clínicas Dr. Alberto Lopes, recupera essa imagem. Os tempos mudaram. “Vivemos numa sociedade que valoriza cada vez mais a educação formal e o desenvolvimento precoce, pressionando os pais a colocarem os filhos, desde muito cedo, em ambientes educacionais de forma a garantir que não fiquem ‘atrasados’ em comparação aos seus pares”, observa.

“Cada família é um mundo”

O pré-escolar não é obrigatório, cada família decide o que fazer, há vários fatores na decisão: expetativa dos pais, características das crianças, oferta na área de residência, modelos educativos disponíveis, disponibilidade financeira, entre outros. Inês Afonso Marques, psicóloga clínica, psicoterapeuta infantojuvenil, vai escutando várias questões. “As dúvidas que os pais mais vão partilhando não se prendem tanto com a frequência ou não do pré-escolar – até porque, na sua maioria, as famílias não têm hipótese de equacionar ser de outra forma -, mas mais com o modelo que é seguido em contexto pré-escolar e qual o que melhor se adequa ao perfil da criança e aos ideais da família”, assinala. “Sabemos que há contextos que são mais formais, com um grande enfoque na antecipação de aprendizagens e acesso a conteúdos do 1.º Ciclo e há contextos que privilegiam a liberdade da criança na exploração dos seus interesses”, acrescenta.

O tempo e as atividades são definidos em família. Anabela Cordeiro está em casa, acompanha os filhos, trabalhou na área de Recursos Humanos em grandes empresas, em 2019, mudou-se com a família de Lisboa, onde viveu uns anos, para a terra natal, mais a norte. Participar na educação dos filhos é ponto assente. “Acaba por ser uma paixão, ter a possibilidade de trabalhar com eles, acompanhar o crescimento de uma forma mais abrangente, do que ir levá-los e ir buscá-los todos os dias à escola.” Admite um certo desencanto com o modelo de ensino. “É muito rígido, pouco criativo, e está desatualizado até.” Vê-o muito amarrado à Revolução Industrial, de linhas de montagem e tarefas repetitivas. “Precisamos de pessoas criativas que não estejam agarradas à competição e o sistema de ensino não dá resposta a isto. Quero acreditar que vai haver mudança, o sistema de ensino precisa de se reinventar. Hoje já não é isto que serve às crianças, podemos propor um ambiente mais belo, não temos de estar agarrados a velhos dogmas”, afirma.

Maria Martinez, mãe de Manu, dá muita atenção à educação emocional, não só dos mais pequenos, sobretudo dos adultos. “É muito importante e falta a muitos adultos que não aceitam a frustração, que não sabem como se posicionar perante sentimentos errados e ruins.” Tudo isso passa dos adultos para as crianças. “O que, muitas vezes, gera adultos muito fechados, muito rígidos, com sentimentos negativos”, comenta.

Maria Martinez decidiu ficar com a filha Manuela desde que ela nasceu. Em setembro, Manu entra no 1.º Ciclo. Até lá, passa os dias a pintar, a brincar, a andar de bicicleta
(Foto: Nuno Brites/Global Imagens)

Não havendo obrigatoriedade, maior liberdade de escolha. “De um modo geral, é consensual que a frequência do pré-escolar é uma etapa com benefícios para o desenvolvimento global de uma criança, pelas oportunidades únicas, difíceis de replicar em contexto familiar, de desenvolvimento de competências sociais, emocionais, cognitivas e motoras em contexto lúdico. A criança aprende sobre si, sobre os outros e sobre o mundo e ensaia comportamentos através da brincadeira e da partilha com outras crianças”, destaca Inês Afonso Marques.

Paulo Dias olha para duas perspetivas. “Se, por um lado, a capacidade dos pais de educar é inquestionável e desempenha um papel importante no desenvolvimento das crianças, por outro, o ensino pré-escolar complementa essa educação, promovendo um conjunto de competências, sejam ao nível social, cognitivo e emocional que são difíceis de reproduzir em contexto familiar.”

Anabela Cordeiro e Yuri Muniz sabem o que querem. “Estamos tranquilos com a decisão, acreditamos que estamos a fazer o melhor para os nossos filhos, no gosto por aprender, a manter a curiosidade”, garante Anabela. Maria e Willian sabem que não há modelos perfeitos. “É uma opção, longe de mim apresentar esta decisão como um exemplo. Cada família é um círculo, tem as suas condições. Cada família é um mundo”, salienta Maria.

Inês Afonso Marques enumera vantagens do pré-escolar: a socialização e a inteligência emocional saem beneficiadas, a autonomia e a independência ficam fortalecidas. “A idade pré-escolar é um marco para o desenvolvimento de competências sociais, que funcionam como alicerces para a capacidade de adaptação futura. Pela interação diária com os pares, a criança encontra muitas oportunidades de desenvolver competências sociais: como iniciar uma conversa, como mostrar aquilo que sente, como negociar, como resolver conflitos, partilhar, cooperar, aguardar a vez, tolerância.”

Paulo Dias também evidencia a capacidade de interação com outras crianças, aprender a partilhar, desenvolver estratégias de comunicação. “Além disso, as utilizações de técnicas pedagógicas específicas ajudam a estimular o desenvolvimento cognitivo e motor, promovendo a curiosidade intelectual e a criatividade”, sustenta. Para o neuropsicólogo, o pré-escolar dá uma estrutura e uma rotina que preparam as crianças para uma suave transição para o 1.º Ciclo. Inês Afonso Marques concorda. “O pré-escolar funciona como um tubo de ensaio de preparação para a entrada no ensino formal”, sublinha.

Para Paulo Dias, a combinação da educação familiar com a experiência do pré-escolar “resulta num desenvolvimento mais completo e equilibrado.” E Inês Afonso Marques considera que o ensino pré-escolar não tem de significar uma escolarização formal precoce. “O pré-escolar é uma bolha onde a brincadeira lidera a aprendizagem.” Em qualquer caso, a decisão está sempre nas mãos e na cabeça de cada família.