Margarida Rebelo Pinto

O meu jacarandá


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Chegou a Feira do Livro de Lisboa. Desde miúda que não falho uma e há 25 anos que vou como escritora. Lá vou estar eu hoje mais uma vez a assinar livros, revendo leitores fiéis, amigos de sempre e novas caras que param e arriscam dois dedos de conversa. É sempre uma alegria, porque adoro ir à feira e os leitores gostam de conversar com os escritores. As pessoas têm, em geral, uma grande curiosidade em conhecer pessoalmente aqueles que lhes chegam ao coração pela palavra escrita.

Tive a sorte de ser protegida por um escritor desde que decidi que esta ia ser a minha vida. O acaso fez com que conhecesse o António Alçada Baptista com apenas 17 anos. Ele apresentou-me livros fundamentais para a minha formação, quer como ser humano, quer como guerreira das letras. Sim, porque para ser escritor, é preciso ter um guerreiro no coração. É preciso nunca desistir de escrever e nunca deixar nada por dizer na palavra escrita. Quando te sentares a escrever, não tenhas medo de nada, dizia-me muitas vezes o António quando vagueávamos por Lisboa de braço dado à noite depois de jantar numa das suas várias tascas de eleição. Era o único adulto que eu tratava por tu, nem me passava pela cabeça fazer o mesmo com outra pessoa da idade dos meus pais, mas com o António era diferente, éramos dois escritores, um em embrião e o outro já consagrado, que partilhavam sonhos e medos. E o maior medo era sempre o mesmo: perder a vontade de escrever.

Quando amamos profundamente alguém, com um amor onde cabem o fascínio, a cumplicidade e a admiração, acreditamos que aqueles que amamos são imortais. Talvez Lisboa já estivesse inundada de jacarandás nesse tempo. Com 20 anos, não me lembro de olhar para o céu e de ver tanta beleza a enfeitar a cidade. Acredito que uma das grandes contribuições da maturidade é conseguir ver mais e melhor. É certo que as dioptrias vão ganhando espaço, mas o coração está mais atento e sentimos melhor o mundo. O António, sem nunca ser poeta, olhava para o mundo e para as mulheres com muita poesia, dizia-me, “bicho, tu vais ser escritora e a tua vida vai construir-se à volta dos teus livros”. Perguntava-lhe como sabia que ia ser assim E ele, com aquele sorriso tímido que suplantava os seus enormes óculos graduados de massa, respondia, “sei porque sinto”.

Foi antes de conhecer o António, talvez pelos meus 12 anos, que chorei pela primeira vez com um livro. “O meu pé de laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos. Depois de o António ter partido, já eu publicara meia dúzia de romances, ir à feira do livro tornou-se difícil. Eu olhava para os jacarandás do Parque Eduardo VII e sentia saudades do António. Dos seus abraços, do seu ânimo perante o meu trabalho, dos seus conselhos pessoais e profissionais e de passearmos por Lisboa a trocar confidências. O António ficou para sempre o meu pé de laranja lima em forma de jacarandá, uma árvore que a vida levou mas cujas raízes cresceram em mim.

Ainda hoje, ao reler a sua pena tão sincera e sensível, me sinto o pequeno Zezé, de seis anos, apaixonado por Minguinho. Também eu era uma criança endiabrada e traquina, e a minha árvore era o António, o meu querido jacarandá, sempre em flor no meu coração.