Valter Hugo Mãe

Os brinquedos de Alfena


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Em menino, o colorido dos brinquedos de chapa e madeira era a tradução perfeita da alegria. Carrinhos e rodas com pássaros batendo as asas eram os meus favoritos. Engenhocas inteligentes, os brinquedos tradicionais tinham a maravilha toda da imaginação. Vinham da artesania genuína, funcionavam como imitações eufóricas dos objectos do mundo dos adultos. Nas feiras, junto com as compras da semana ou do mês, por vezes, recebia um brinquedo de chapa ou de madeira e soprava-lhe o pó. Dificilmente o deitava ao chão, não o queria riscar, não o destruiria por nada. Olhava-o. Movia-lhe os arames para lhe dar velocidade, mas mais a imaginava do que a criava de verdade. Os meus brinquedos tão bonitos tinham de durar a vida inteira. Era o que eu queria.

Não duraram. Mas a culpa foi das voltas da vida. Quando mudámos de casa, mudámos de terra, tudo se escolheu, e encolheu, e tanto ficou perdido ou oferecido a crianças gratas que encontrámos. Os brinquedos tradicionais ficaram fechados num tempo, assim como o tempo passou e tudo se fez distante. A infância é guardada numa memória quase inacreditável. Um lugar por onde passámos mas que jamais se deixa visitar de novo.

Aprendi agora que foi em 1921 que um senhor de nome José Augusto Júnior inventou os primeiros brinquedos com a chamada folha de Flandres. Em Alfena, Valongo. Uns anos mais tarde, em 1928, este artesão começou a explorar também a madeira. Estavam criadas as primeiras formas. A minha infância, como a de tantas crianças, haveria de ser profundamente marcada pela arte deste homem. Vendidos por quantias pobres, os brinquedos a que deu origem foram a nossa maravilha, e eu julgo que tanto do que entendi sobre como podem funcionar engenhos e maquinetas, geringonças e espantalhos, tambores e rodas, foi com as estruturas destas obras. Brincávamos à vista de uma ciência que poderia ser simples mas fundamental para descortinar o ágil do corpo, o seu movimento, a velocidade, a resistência. Estes brinquedos tão bonitos também nos mostram suas tripas, o intrincado de seus mecanismos, e a curiosidade trazia uma informação gratificante, algo a que acedíamos fascinados.

A autarquia de Valongo, no esforço de preservar a tradição deste cândido artesanato, abrirá este ano a Oficina do Brinquedo Tradicional Português. A obra de arquitectura reformou de modo brilhante a antiga escola de Cabeda, em Alfena, e promete conservar um acervo essencial, bem como promover a criação de brinquedos segundo os métodos tradicionais, permitindo que esse conhecimento e maravilha sigam inspirando novos e velhos.

Por sorte, ofereceram-me uma colecção completa destas obras. Pasmo agora diante de cada objecto, já não como criança, mas como um adulto diante da arte. A arte pura.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)