Joel Neto

Pés de barro


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

É uma coisa formidável, o corpo. Há dias, num aparte que quis cúmplice, um camarada de liceu viu-me às voltas na livraria e esperou o momento de me sussurrar:

– Tu mandas alguma coisa p’ra dentro, não mandas? Ah, pois claro que mandas…

Por outro lado, não sabe que me doem os pés há anos, primeiro porque decidi começar a correr tarde e ultimamente porque passo o dia para trás e para a frente, do balcão para a esplanada e do microfone para a copa, como se não tivesse cinquenta anos nem nada a perder.

Inesperadamente, os pés tornaram-se a minha fragilidade oficial. Não são os calcanhares, nem os tornozelos, nem as articulações: são aquelas duas plataformas mal acabadas, com uns dedos gorduchos a adornar.

Não parece uma coisa assim muito máscula: ao menos se fossem os gémeos, ou os adutores, eu poderia culpar “os tempos do futebol”, ou mesmo “um instrutor sacana que tive na recruta”. Calharam-me os pés, aliás metafóricos (e piadéticos). Só não os escaldo por falta de tempo, mas esse não é o ponto. O ponto é que todos nós temos um momento em que o nosso corpo nos lembra de que existe, e que o meu estava caladinho desde que eu descobrira as palmilhas feitas à medida.

É uma máquina, o nosso corpo, e todos os dias, agora, me apetece agradecer ao meu pelo que me permitiu fazer. As profissões que tive, as brincadeiras em que participei, as sensações que vivi, os lugares onde fui: o que poderia eu ter conseguido fazer sem este corpo? E se tivesse tido um corpo doente, amarrado (sei lá) a uma cadeira de rodas, ou mesmo só macilento? E se tivesse tido um corpo extraordinário, daqueles em V, mas depois não fosse capaz de conjugar um verbo começado por V?

Devo muito a este corpo. Quase todo o mal que lhe fiz, nestes primeiros cinquenta anos, foi porque a minha mente nem sempre esteve à altura dele.

Mas também me pergunto se ele teria aceitado chegar aqui se não se tivesse podido sacrificar por ela, com certa nobreza. E talvez esta crónica esteja mesmo a pedir um aviso moralista, do tipo: protejam o vosso corpo. Quem sabe não foi por isso que ainda há pouco a Marta me disse, ao ouvir-me explicar-lhe o que pretendia que esta crónica fosse:

– Porque é que não escreves sobre a capa do livro da Olga?

De maneira que não vai haver moralismo, embora um conselho eu ainda espere dar ao meu filho: procura conhecer o teu corpo, Artur. Tenta ganhar consciência dele. Também para isso a tua mãe, que foi tão boa ginasta, é perfeita.

De resto, para a semana sou capaz de escrever sobre o livro da Olga.