Quando os cuidadores vão de férias

Macário Marques e a mulher, Vina, conhecem as necessidades da neta, Joana, com uma doença rara, e ficam com ela quando é necessário. António, Ângela, Maria José e Rosa tratam da mãe quando a irmã, Fátima, sai uma semana. Jorge Pacheco é voluntário num programa para pais de pessoas portadoras de deficiência em Fátima. Maria Cristina cuida de sete famílias, está numa bolsa de um programa municipal de Matosinhos.

Joana tem 20 anos e uma doença rara, neurodegenerativa, síndrome de Sanfilippo, demência infantil com questões comportamentais associadas. Em maio, durante quatro dias, ficou com o avô Macário Marques e a avó Vina Marques, quando os pais tiraram juntos e em casal umas curtas férias, o que não acontecia há anos, um presente da tia Rita Marques, irmã da mãe. Correu bem.

Os avós conhecem a neta, tentam manter as suas rotinas, a alimentação, o banho, a leitura de uma história antes de deitar, o quarto não pode estar totalmente às escuras para dormir, a medicação tem horas marcadas. Se Joana está no sofá, se levanta e começa a andar à roda, é sinal de que quer ir à casa de banho. Os avós sabem. Há momentos em que está mais calma, há alturas em que está mais inquieta. “Se houver um apoio, não há nada melhor do que ser a família”, comenta Macário Marques. É o caso e a situação é bastante particular.

“É preciso conhecer a Joana para saber as necessidades dela, a forma de se expressar, como se sente, como está”, adianta Raquel Marques, a mãe. “A Joana tem fases de muita instabilidade, o que nos deixa muito hesitantes em deixá-la com quem quer que seja”, acrescenta. Sem ser a família, as possibilidades não são boas. Raquel Marques explica. “Não é fácil, teríamos de contratar uma baby-sitter e não poderia ser uma baby-sitter qualquer.” E esses serviços são raros e são caros. Toda a família sabe disso.

Os avós dão conta do recado, estão habituados à logística da medicação, da alimentação, da condição física e mental da neta, já tomaram conta dela várias vezes. Fazem-no com todo o gosto e dedicação. “Somos as únicas pessoas que podem dar este apoio à nossa neta e que deixam os pais absolutamente descansados.” Não são dias iguais aos outros, Macário e Vina tentam replicar em sua casa o que acontece no lar de Joana. É preciso organização, atenção, e as circunstâncias são especiais. “A nossa neta é totalmente dependente, não fala, não se explica, não diz o que lhe dói, o que sente, é preciso pensar por ela, o que exige alguma disciplina em tudo, desde que se levanta até que se deita”, diz Macário Marques. “Uma das preocupações é ir à casa de banho de duas em duas horas para não fazer na fralda.” Macário e Vina complementam-se, ajudam-se mutuamente, para que a neta se sinta em casa. “Cuidar dela exige conhecimento, preocupação, dedicação, cuidado e atenção permanentes.”

“É preciso conhecer a Joana para saber as necessidades dela, a forma de se expressar, como se sente, como está”, diz Raquel Marques, mãe de Joana
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Há oito anos que Fátima Coelho cuida da mãe, Maria Glória, 87 anos, com demência de Alzheimer. Quando a doença começou a dar os primeiros sinais, a falta de força para fazer o quintal, os diálogos com as mãos, a perda repentina de jeito para a costura, os esquecimentos e a falta de equilíbrio, os irmãos reuniram-se. Decidiram fazer obras, esticar um pouco a casa nas traseiras, fazer uma casa de banho adaptada, tudo num único piso. Tornar a casa mais funcional para a mãe, prepará-la para o circuito de uma cadeira de rodas.

Fátima e o marido, Manuel Castanheira, deixaram o apartamento em Santa Maria da Feira e mudaram-se para São João de Ver, a poucos quilómetros. “Só se não puder, só se não tiver forças nos braços, sempre disse que os meus pais nunca iriam para um lar”, confessa Fátima Coelho, que também olhou pelo pai nos últimos momentos da sua vida. “Não tenho isto como um fardo, cuido da minha mãe de vontade e de coração.”

Os irmãos estão sempre ali ao pé, atentos e disponíveis, para qualquer coisa, para qualquer eventualidade. Quando Fátima e Manuel vão de férias, normalmente uma semana por ano, em agosto, o irmão António e as irmãs Ângela, Maria José e Rosa organizam-se entre si, revezam-se nos dias, quem cozinha, quem dá banho, quem faz companhia, quem fica durante a noite, consoante a agenda de trabalho de cada um. Têm os seus trabalhos, as suas vidas, mas estão sempre perto, à distância de um telefonema, a poucos quilómetros uns dos outros. “Para nós, é um descanso estarmos em casa e estarmos tranquilos porque sabemos que a nossa mãe está bem com a nossa irmã e o nosso cunhado”, diz Maria José. “É nossa irmã, se precisa de alguma coisa, liga, é um descanso estar com a nossa mãe”, completa Ângela Coelho.

“Ter a nossa irmã a cuidar da nossa mãe é o melhor que nos podia acontecer e é o melhor que a nossa mãe merece”, reconhece Rosa Coelho, que fala em bênção e em gratidão para o que Fátima e o cunhado Manuel fazem “de uma forma leve.” “É tudo feito com amor”, resume António Coelho. Aos domingos à tarde, a família tem uma escala para que o casal possa sair. “Em caso de algum compromisso social, telefona-se, vê-se quem pode, há sempre alguém disponível”, salienta Rosa Coelho.

“Não é um fardo, cuido da minha mãe de vontade e de coração”, garante Fátima Coelho, cuidadora da mãe, Maria Glória
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Jorge Pacheco é cuidador voluntário na iniciativa “Vem para o meio”, programa de férias para pais de pessoas com deficiência, promovido pelo Santuário de Fátima, realizado com o apoio da Associação dos Silenciosos Operários da Cruz, durante várias semanas de julho, agosto e início de setembro, com momentos e atividades de convívio, lazer, cultura e celebração. Há dez anos que se inscreve e tem participado no programa que lhe chamou a atenção pelo subtítulo “para mães de pessoas portadoras de deficiência”, depois de ter tirado uma pós-graduação em Educação Especial. Queria sair da teoria, experimentar a prática, fazer voluntariado. “Vivemos e convivemos com pessoas que têm algumas necessidades e aprendemos muito: a atenção ao pormenor, formas de superar fragilidades que nos parecem intransponíveis”, conta.

Há uma história que Jorge Pacheco não esquece, a de uma mãe que cuidava sozinha dos dois filhos autistas e que desabafava que agosto era o pior mês, que nem ao supermercado conseguia ir. “A vida de quem cuida é bastante diferente, desde o gesto mais simples, desde o levantar ao deitar.”

Férias, na verdade, não é palavra usada pelos cuidadores. “Não é, de todo, o conceito adequado para o descanso do cuidador, não é disso que se está a falar, o descanso é para muitas coisas, como o cumprimento de outras obrigações, para a realização de outras necessidades.”

“A vida de quem cuida é bastante diferente, desde o gesto mais simples, desde o levantar ao deitar”, sublinha Jorge Pacheco, cuidador voluntário no programa “Vem para o meio”, do Santuário de Fátima
(Foto: DR)

Os dias, as noites, a vida social

Maria Cristina Ferreira é cuidadora há dez anos. Primeiro, cuidou da mãe, do pai e do marido, todos doentes com cancro quase ao mesmo tempo. Os pais faleceram, entretanto, o marido recuperou e ficou bem. Foram cinco anos a tratar da família, depois disso, tomou a decisão de se dedicar à geriatria. “Deixei a minha vida profissional com 51 anos”, recorda. E não voltou à última função de diretora de qualidade alimentar de um grande grupo comercial. “Foram cinco anos muito compactos, são opções que se fazem na vida. Acredito que Deus só nos dá a cruz que conseguimos aguentar, acredito que tudo tem um motivo para acontecer”, acrescenta.

Neste momento, Maria Cristina faz parte da Bolsa de Cuidadores do programa “Matosinhos a cuidar”, da Câmara Municipal de Matosinhos, que, desde o início deste ano, permite a possibilidade de os cuidadores tirarem uma ou duas semanas de férias, deixando a pessoa cuidada num lar, de forma gratuita. O projeto municipal surgiu em 2019 com o objetivo de organizar e integrar respostas especializadas para cuidadores informais.

Antes de entrar na bolsa, Maria Cristina frequentou um curso de geriatria no Hospital Pedro Hispano, meses depois ouviu falar do programa de Matosinhos, candidatou-se, entrou, esteve dois meses em estágio. Neste momento, tem sete famílias atribuídas, quatro horas por semana em cada casa, 35 horas semanais, dentro do horário das 8 às 20 horas. “Quando estamos nas famílias, tentamos aliviar o dia do cuidador informal para que possa sair de casa, passear, ir ao cabeleireiro.”

As famílias falam em descanso, não em férias. Falam em noites mal dormidas, muitas preocupações na cabeça. “Ninguém fala de férias, falam de cansaço, em exaustão, em falta de paciência, e nós estamos ali para ajudar e fazer a diferença. O nosso foco é conseguir que as pessoas saiam de casa para tomar café ou apanhar sol.”

“Ninguém fala de férias, os cuidadores falam de cansaço, em exaustão. O nosso foco é conseguir que as pessoas saiam de casa para tomar café ou apanhar sol”, diz Maria Cristina Ferreira, cuidadora da bolsa do programa municipal “Matosinhos a cuidar”
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

“É a nossa princesa, a minha andorinha, ela é tudo para nós”, diz Fátima Coelho ao pé da mãe, que, por vezes, sorri, conhece as pessoas, outras não, cristalizou os filhos na infância, ainda são pequenos na sua memória. Não dispensa o seu café, ao almoço foi polvo, batatas a murro e legumes passados pela varinha mágica pela filha, Fátima, comidos pela própria mão. Há dias em que prefere ficar mais tempo na cama, há noites com sonhos mais agitados. A médica de família, Carla Pina, vai lá a casa fazer a consulta, o seguimento com o neurologista tanto é feito à distância, como presencialmente.

Fátima Coelho decidiu aprender técnicas para cuidar, fez parte de um grupo do projeto “Cuidar de quem cuida”, participou em dez sessões. “A formação ajudou-me muito, como lidar com o doente, como dar banho na cama, até ao hospital a gente foi”, realça. Apanhou o jeito de levantar a mãe, de a mudar de sítio. “Caminha agarrada ao meu pescoço.” Fátima Coelho chegou a ir, uma vez por mês, a reuniões de cuidadores, na Junta de Freguesia da Feira, sessões de partilha. “Partilhávamos experiências do cuidar, de como tratar, como dar a volta a várias situações”, lembra.

Os quatro dias de férias de Raquel Marques e do marido, António Vicente, foram uma exceção. Os momentos de lazer e descanso vão sendo combinados entre eles, escapadinhas curtas com a filha mais nova, Sofia, de 15 anos, ora com o pai, ora com a mãe. Um jantar fora, a dois, e Sofia fica com a irmã uma ou duas horas. As férias de verão são passadas a quatro num apartamento da família, no Algarve, opção pensada e ajustada por causa da logística de Joana, tudo seria mais complicado num hotel. “A vida social é muito comprometida, a pessoa adapta-se, mas não é fácil”, confessa Raquel. E os seus pais, já reformados, estão sempre à mão, sempre ao dispor. “São as únicas pessoas que têm a real perceção do que implica cuidar da Joana, as únicas que ficam com ela durante a noite.”

Joana tinha seis anos quando lhe foi diagnosticada uma doença rara, incapacitante. Raquel Marques, a mãe, criou a Associação Sanfilippo Portugal em 2014 para sensibilizar a sociedade, contactar com outras famílias afetadas, fornecer informação adequada e atualizada sobre a doença, apoiar a investigação. A falta de respostas sociais é flagrante. “Não existem respostas para deixá-la um fim de semana.” Neste momento, Joana está numa escola pública, numa unidade de multideficiência, está em lista de espera para ter uma assistente pessoal e a aguardar se terá lugar num CAO (Centro de Atividades Ocupacionais). “A escola acaba por ser a resposta atual e a Joana vai sair da escola. A partir daí, é um vazio e a sociedade não tem consciência disso. É o vazio para os jovens, é um drama.” Raquel não esquece a frase de uma mãe da associação que, um dia, lhe disse, a propósito dessa falta de rede: “Parece que deixamos de existir”.

O impacto nas famílias, uma linha de apoio

Palmira Martins é assistente social, representante da RD-Portugal, União das Associações das Doenças Raras de Portugal, no Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, e vê cuidadores exaustos, respostas sem vagas, cuidados continuados lotados, falta de recursos para suavizar o estado de quem cuida.

“Portugal é dos países em que os cuidadores estão completamente exaustos, a privação do sono é incapacitante”, sublinha. Quem precisa de ajuda, muitas vezes não consegue contratar serviços privados, são caros, é inviável. O Estatuto do Cuidador Informal, em seu entender, está bem feito, bem escrito, bem previsto. Na teoria, tudo bem. Na prática, não funciona. A falta de recursos humanos é o grande problema. “Não aumentam os efetivos da Segurança Social, na saúde a mesma coisa. Para fazer acontecer face ao que hoje existe, o estatuto não funciona.” Com uma agravante que, para Palmira Martins, convém não esquecer. “O cuidador vai-se tornar um doente.” Com todos os custos que isso implica. E férias? Não há férias, explica Palmira Martins. “Fazer férias é um termo que os cuidadores não utilizam, é um termo que não casa”, responde.

A RD-Portugal tem o projeto “CUIDARaro” para proporcionar descanso aos cuidadores informais de pessoa com doença rara, num período de 20 horas por mês, durante seis meses. O cuidador pode escolher o formato mais indicado às suas necessidades e características e são feitas visitas de aceitação com o cuidador formal que faz essa “substituição”. O projeto tem a duração de um ano, só pode abranger 15 famílias, que submetem uma candidatura e não têm de suportar custos. “Este projeto permite a criação de uma resposta social que não existe, tem impacto social a nível das famílias, é flexível e pode ser adaptado a outras realidades”, refere Palmira Martins.

Há dois anos que Fátima Coelho anda a tratar do subsídio do cuidador, não tem qualquer fonte de rendimento, ficou desempregada antes dos 52 anos, tem mais de 30 anos de descontos. “Preenchi todos os papéis, mandei-os para a Segurança Social, que não me considera a cuidadora principal.” Contestou a decisão, munida das mesmas indicações técnicas e médicas solicitadas que atestavam que era a cuidadora da mãe. “Preenchi os papéis pela segunda vez e estou à espera de resposta.” António Coelho, o irmão, prevê o que acontecerá, só depois de a mãe partir é que terá uma resposta, e será negativa, porque deixará de fazer sentido. Há promessas feitas que não se cumprem, que não o convencem.

As dificuldades refletem-se no mais recente estudo do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais que mostra um cenário preocupante a nível da saúde mental. A maioria dos cuidadores informais, mais precisamente 83%, já se encontrou num estado de burnout, de exaustão emocional. E 78%, ou seja, quase oito em cada dez cuidadores, admitem ter sentido necessidade de apoio psicológico, em algum momento da sua vida.

A Linha de Apoio Psicológico Para Cuidadores Informais, da Europacolon Portugal, no âmbito do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, está a funcionar desde setembro do ano passado e assim vai continuar até ao fim do ano, pela procura registada de mais de 200 chamadas até agora e pela ausência de resposta em termos de saúde mental e bem-estar dos cuidadores. A linha está aberta cinco dias por semana, de segunda a sexta-feira, das 10 às 12 horas e das 15 às 18 horas, nos números 960 199 759 ou 808 200 199, para escutar desabafos, emoções e dificuldades dos cuidadores. Do outro lado da linha, estão profissionais da área da psicologia prontos a responder, ouvir, ajudar. O custo é o de uma chamada local. Por tão pouco, uma ajuda imensa.